segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Era uma vez uma noite

O céu estava aberto e abria-se mais uma cerveja. No relógio do despertador na mesinha de cabeceira, são as 4:37 da manhã, ou seja, tirando então os vinte e dois minutos adiantados prévia e propositadamente, ficamos com a real (?) hora, de 4:15!
Mais uma vez chegava a noite, a madrugada, e não chegava o sono. Mais uma fatigante noite ao contrário, mais uma noite com o rio a correr para a fonte. Quem sou eu nestas noites? Serei menos eu agora que sou de dia?
São estas as noites das questões, ou são essas as noites das respostas? Será a noite o enigma supremo, a questão primordial para a existência de tudo, a resposta de todo o ser! Serás tu minha noite, noite que te prendes e que não largas, noite bruta que nos educas á força de cruéis e desumanos castigos. Todos dormem menos eu. O candeeiro, o livro, as arvores lá fora, as pedras no passeio, tudo agora dorme menos eu.
No site indica que são uns muitos os que agora estamos on-line. Quantos são os meus pares? Quantos de nós não navegamos na noite movidos por uma eterna insónia? De site em site, de bar em bar, de copo em copo, de corpo em corpo, de bafo a bafo, esfumamos as nossas noites, soprando-a em espessas baforadas. Ou fuma-nos ela a nós? A minha fuma-me.
Quem se faz de noite. Quem se faz da noite? Quem vive a noite? Quem ama a noite? Mais que qualquer um dia?
A cerveja escorrega sem atrito goela abaixo. Acendo um cigarro.
Do outro lado do cabo, fala via MSN um outro desnoitado amigo. Não se diz nada.
A mesma treta de sempre. O sono não vem. Onde se prende esse filho da puta teimoso como o caralho?
Lembro-me em miúdo, de me aconselharem a contar carneirinhos quando vinha a tia insónia visitar-nos. E eu, estúpido, contava. Nos primeiros anos, quando contava, não imaginava. Limitava-me a contar: Um carneirinho, dois carneirinhos… depois, e dado à falta de eficácia do método anterior, e aconselhado já não sei bem por quem, não me limitava a contar apenas com recurso à numeração os carneirinhos, á sequência, acrescentava-se então a imaginação de ver os carneirinhos a pular a cerca. Assim, imaginava: Um carneirinho a pular a cerca, dois carneirinhos a pular a cerca…
Não faço ideia de quem tenha sido o iluminado autor desta ideia, mas também nem quero saber, não tenho particular interesse em perceber de onde vem e porque se perpetuou esta forma de combate às insónias. Mas sinceramente, não vos parece esta ideia, a modos que um bocado, estúpida? Contar carneiros? Poupem as pobres das criancinhas. Difícil arranjar algo menos produtivo para se fazer… Quantas geniais ideias não foram já por água abaixo, por estarmos nós a contar carneirinhos?
Deixei de contar carneiros. É estúpido!
Algures noutro ponto qualquer do mundo começava agora uma nova noite.
A noite é a nossa segunda oportunidade, é a nova hora para mostramos o que realmente valemos! Quantos de nós temos direito à noite? E tu quantas vezes dás uma noite a alguém? Quando merecemos ou não uma noite? Todos merecemos? Merecemos sempre?
Acaba mais uma cerveja, abre-se mais uma outra, acende-se mais um outro cigarro, um outro site, uma conversa pendente, mais uma...
Porque não dormimos nós os ensonados, os adormecidos dos dias? Porque nos mantêm os olhos abertos na escuridão e nos cerram à luz da luz? Porque não usamos a noite para a sua devida função? É qual será ela? De que nos serve a noite? Quanto de nós é feito à noite?
Amanhã há um sem fim de responsabilidades que desresponsavelmente não se irão fazer. amanhã ainda não será amanhã, ainda não é amanhã que caminho para mim! Amanhã fujo outra vez para o lado de lá, para o lado do escuro, para o meu lado negro, a minha noite escura e cansada, a minha noite suja e suada, a minha falsa e agoniante noite, noite pura e dura que me segura. Esta minha noite!
A noite não tem amanhã, não tem sequência, não tem história, a noite é coisa sem passado nem futuro, a noite é só o efémero presente, na noite todo se perde, ela própria se engole a si. Ás trevas o que é das trevas!
Ouve-se um tiro, cai o morto. Agora. Agora também, o amante cobre a amante descoberta e beija-lhe a face. Agora um velho agonia, agora um louco devaneia, um cão ladra, e eu bebo cerveja de frente do meu computador. Quantas noites me faltaram?

Espero sentado o tiro da sorte, tanto disto é sorte. Tudo isto é sorte! Pelo que dizem, o mundo existe porque, por um mero acaso, houve condições que levaram a uma explosão, por inúmeros de outros meros acasos, houve então um planeta que obteve condições de adquirir vida. Então, por mais não sei quantos meros acasos, formou-se um caldo, o primordial, e por muitos meros acasos a mais, fomos peixes, répteis, e chegamos por milhões de meros acasos, a humanos. Para sermos o humano que somos, temos que agradecer à sorte que tivemos, de, um mero dia, o nosso pai e a nossa mãe, estarem no mesmo sítio, à mesma hora, e se terem conhecido, com todos os meros acasos que tiveram que acontecer para que isso assim se sucede-se. E claro, agradecer também ao mais veloz do espermatozóide do pai que fecundou um dos saudáveis óvulos da mãe. Multiplicando então, a cada um dos nossos ascendentes, a nossa improbabilidade, e por todos as outras que disse e todas as outras que não tive paciência para enumerar, é fácil compreender, que é uma puta de uma sorte do caralho, estarmos agora onde estamos, seja lá onde quer que cada um de nós esteja! Qual euro milhões?!
Não quer isto dizer que isto faz sentido, mas foda-se, já que estamos cá, temos é que aproveitar. A vida é uma gigante e eterna festa, uma festa sem festejos exacerbados, a festa dos tristes e dos calados, a vida é a festa da noite.
Desaprendo a viver, parece que nasci ao contrário, uma árvore de raízes para o ar. Dantes sabia onde estava, sabia para onde iam os caminhos, escolhia-os. Mas agora perco-me, experimento-os a todos e não sei onde nenhum vai dar, em cada passo cambaleio, deslizo…
No relógio do computador vêem-se as 5:06 da manhã, hora certa. Que será que me apetece ouvir? Nouvelle Vague, Noir Desir… Decido Vinicius. O de Morais é claro!

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