domingo, 6 de janeiro de 2008

Performance com dedicatória.

Dos céus vêm uns vivos raios solares intensos de verão. A brisa sobra suave…
Este era o início, disso já não haviam dúvidas. Já não era a primeira vez que tinha um início, muitos foram os inícios os começos, mas desta vez estava mesmo decidido, era este o início.
Um livro.
Um dia decidira que ia escrever um livro. Tinha a ideia, enredo todo ordenado já na cabeça, tinha papel e caneta e escrevi. A partir daqui, será apenas alinhavar, compor pormenores, corrigir defeitos e está o livro feito.
No fundo da rua, lá na esquina, vê-se um velho sentado no chão, cigarro na boca, e em mãos, as teclas de um velho acordeão, lançando em lentos movimentos, melancólicos e tranquilos acordes, que inundam a rua. O sol vai alto e uma criança puxa a camisola da mãe e pede uma moeda para o velho. Eu vejo ao longe, longe deles, longe de mim.
Aconteceu. Isto aconteceu. Talvez não tivesse sido muito bem assim, talvez o sol não fosse tão alto, talvez ele não fosse assim tão velho, se calhar não fui eu que vi, mas sei que isto aconteceu. Algures… Algures numa dessas ruas do mundo, com um velho, com uma criança e uma mãe, isto aconteceu. Algures por ai aconteceu por certo!
Eu queria escrever sobre esse velho, mas também quero escrever sobre aquela mãe e aquela criança. Quero-os todos no meu livro, a eles e a muitos mais. No meu livro é para figurarem todos os meus já conhecidos e os por conhecer. Quero todos no meu livro. Todos com direito a personagem. No fundo, o meu livro perfeito, seria esse; o de encerrar nele, todas as personagens do mundo, todas elas num só livro, no meu livro!
Vai ser assim o meu livro, sem pressas nem falsas modéstias.
Ainda bem que não temos tanto para crescer, ainda bem que há gente que nos faz crescer. Ainda bem, que por vezes, se caminhe mais devagar que o necessário. Ainda bem que há segundas oportunidades, ainda bem que há prazer e ingenuidades. Tudo se confunde, tudo se funde. Se deixas, tudo se funde, penso cá para mim.
Ninguém é normal. Ninguém se prevê e mesmo quem se esconde, se vê.
Como diria o outro “Ninguém é de ninguém”, nem de nós próprio somos! Não nos pertencemos, nem ninguém nos pertence. Todos somos pretensões inacabadas, imperfeições desenhadas a traço fino no papel da vida. O velho toca, as notas voam, as crianças passam e eu nasço em plena rua, só.
Chegado a casa tudo se me apresenta desconhecido. Serei eu de cá? Que me pertence? E eu pertenço a quê? Será meu o sofá ou serei eu do sofá?
Hei-de escrever um livro. Já tenho um início sem fim, e um fim sem início, já tenho ideias fixas nas maiores das incertezas, e tenho cá para mim, os meus motivos.
E meu livro terá motivos? E para que é que servirão motivos? De que nos serve saber a lógica ás coisas? Lógica!?
Meu livro erguer-se-á num tempo suspenso, num templo de nadas. Meu livro virá do nada para o nada, de ninguém para ninguém, para que todos compreendam quantas coisas são feitas de nadas, quanto de nós não é nada, quanto nulos somos no final de todas as nossas somas. Quanto acreditas em mim? E no teu Deus, quanto acreditas?
No gira discos, roda a nona de Beethoven, mais nada existe, nem eu, nem a casa, nem o sofá, nem o copo que seguro adormecido na mão, embalando este vinho tinto, que também não existe. Só as ondas são certas, agora, só elas, tenho certeza que existem. Elas e as sensações que provocam. No mundo inteiro, agora, neste preciso momento, existe apenas som e sentimento.
Quero dizer tanta coisa, tenho tanto assunto e razões por escrever.
Sei de tantas histórias reais e imaginadas dignas de se passar para o papel, de as entrelaçar umas nas outras e fazer delas um lindo embrulho. Sei de tanta gente que fez com cada história! Histórias de rir, histórias de pensar, histórias de chorar, histórias de prazer e de dor.
Não percebo porque tenho que ser eu a escrever este livro, não entendo porque se me afincou na mente que teria que ser eu a escrever tal livro. Mas também, quem mais poderia ser a escrevê-lo senão eu?
A questão será, para quem? Para quem vou eu escrever o meu livro, em que mesinhas de cabeceira se vão deitar, e de que camas vêm, os meus livros? O meu livro! De onde virá ele? Para onde irá e a quem servirá? De que nos servirá? Para que nos serve um livro? A quem lê e a quem o escreve. De que serve?
O dia em Calendário fazia-se noite, risca-se devagar mais um dia do calendário. Agora, cá em Calendário, faz-se preguiçosamente noite.
O som já acabou, voltamos todos a existir, o mundo voltou a seu lugar e eu levanto-me do sofá.
Como serei eu quando for velho? E se nunca for? Que será de mim se nunca fui velho?
Não queria entrar no meu livro. Queria ficar para sempre de fora dele, queria um livro, o mais impessoal possível, o mais sem mim possível…Preciso tanto de mim para tantas outras coisas… Preciso tanto de mim!
Meu livro é sobre um homem que mora só, num T0 em Calendário. O livro contará de como o homem passa o seu dia-a-dia lá no seu Calendário, descreverá as suas rotinas, os seus hábitos, as suas peculiaridades, as suas memórias, e é claro, todas as rotinas, os hábitos, as peculiaridades, as memórias, das suas companhias, e se se verificar necessário, falarei, salvo seja, das companhias do companheiro que suscitar tal necessidade. Como antes disse, quanto mais gente melhor.
Tendo já afirmado no meu parágrafo anterior que o meu livro era sobre um homem, restringindo-lhe assim, um único protagonista, julgo ser oportuno elucidar que o meu protagonista, é um clarinetista de orquestra, que sonha ser saxofonista jazz, e o meu livro, será essencialmente, sobre, como esse sonho influencia a sua vida.
A natureza tende para a perfeição. Em cada geração somos mais perfeitos, mais complexos. E as pedras? São elas hoje mais perfeitas que ontem? Que haverá mais perfeito que uma pedra?
Um som.
Gostava de explicar melhor porque escrevo um livro, mas para isso, precisava eu próprio de compreender melhor porque o escrevo. Como se explicam coisas que não sabemos explicar? Com invenções e divagações? Com deuses? Porque não? Que seja!
Se existe um Deus, ele será som! Disso já não me restam dúvidas, aquele velho, era deus, transformado no som do seu acordeão.
Enchia mais um copo de vinho, dava um gole, pousava-o na mesa, sentava-se na ponta do sofá, pegava no saxofone e, o mundo parou!
E agora, que me falta dizer? Por onde hei-de ir agora? Ainda me falta dizer tanto…
Vivi agora uma fase muito atribulada na minha vida. Graças a tanta confusão deixei de escrever durante um bom pedaço de tempo. Agora não me recordo bem, para onde queria ir com a minha história. As ideias ainda cá estão, mas estão mais confusas, menos nítidas e coerentes.
Agora, também já não há mais nada a fazer a não ser continuar, seja lá por onde for, há-de haver uma qualquer peça que encaixe nos meus números do dominó.
Fui jantar fora. Cansei do vazio.
Telefonara para Catarina a convidá-la a jantar, mas não podia, tinha muito que ensaiar…
A Catarina é violinista. É das poucas com quem me dou lá da Orquestra, mas pouco, não sou muito apreciador de músicos, nem de músicas.
Telefonei depois ao Luís a ver se era ele que servia de companhia, também não podia. Que seja, sozinho!
Já não tenho tanta certeza assim se será este o começo para o meu livro. Talvez eu esteja a ir rápido demais. Preciso de me concentrar, de parar um pouco, ler um pouco mais, viver mais. Talvez seja melhor guardar para amanhã. Afinal de contas, guarda para amanhã, o que não podes fazer hoje.
Não desgosto da solidão, procurei-a e ainda a procuro várias vezes, mas por vezes dói!
O velho do acordeão ainda é vivo e toca todos os dias, de primavera a verão, na mesma esquina. A criança que um dia pediu esmola á mãe para o velho, cresceu, agora, também ela é música, graças ao velho.
Conheço muito bem este senhor. Tenho muita estima e respeito a este homem, assim como lhe têm todos os que o conhecem. Cá na terra não há alma que não o conhece. O senhor Xavier. Grande homem este Xavier!
Nunca quis pensar no que pensaram os outros de mim, sempre me diverti mais a pensar em que penso eu de mim, é isso que realmente me importa. Que penso eu de mim?
A cada dia que passa sinto-me cada vez mais confuso. Percebo cada vez menos de tudo isto, porque existimos, que andamos cá nós a fazer? Porque tudo se perde em sentido? Tudo se esvai, tudo se ilude. E tu onde estás? Estarás tu em Calendário?
A noite acabara no bar rodeado de amigos. Todos músicos. Detesto músicos!
Alimentava-me a noite toda a “Jack Daniels”, e carregava já, uma borracheira das de ver a dobrar.
No dia seguinte, acordava e lembrava-me apenas de a meio da noite me ter virado para a Catarina, e de a ter chamado de quantos nomes haviam. Não me lembro porquê!
Porquê?

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns...
Fiquei siderada!! lindo!
Mais uma vez Parabens...
e afinal onde é que anda esse livro? ;)

paulita mulher metálica disse...

Não guardes para amanhã, porque amanhã ele* poderá não vir...
Escreves muito bem, deves dar a conhecer ao mundo a tua escrita através desse livro.
Avante, camarada!

*o livro
abraço de aço