Oi.
Olá!
Está aí alguém?
Alguém me consegue ouvir?
Ler?
Ver?
Sentir?
Alguém está aí?
Talvez esteja:
De facto a minha vida tinha sido preenchida de nadas. Infelizmente, ou talvez não, que nestas coisas dos ses nunca se sabe, clausulei-me neste mosteiro. E isto garanto-vos é pior que prisão, ou talvez não, que nunca a vivi! Mas deve ser melhor lá, deve ter mais movimento, mais conversa, mais acção, mais vida. Lá devem haver brigas e rebeliões, deve haver gente rude e sem escrúpulos e haverá por certo gente justa e humilde que os anulam. Quanta gente justa não se encerra numa jaula? Como sobrevivem eles a tal? Estaram todos os justos enjaulados?
Na prisão há um motivo, tem que haver, nem que seja um falso motivo, mas há-o. Se não for um arguido de Kafka, tem-no decerto. E eu? Que motivo tenho eu? Que crime cometi para ver a minha vida a passar-se nas paredes deste mosteiro? Sombras da sombra do que não vi, do que não cheirei, do que nem soube existir. Foi assim que se passou. Foi assim que me passei…
Não preciso de deus. Para que preciso eu dele. Para que fale por mim, para que pense por mim, para que viva por mim? Para que preciso eu que vivam por mim? E eu vivo por quem se não por mim? Pelo morto que desapareceu? Vivo eu, por causa de um morto que desapareceu? Por um morto que se sentava todos os dias na esquina da masmorra de perna cruzada e pedia em silenciosas e repetitivas vozes:
- Arranja-me um cigarro… Vá lá, um cigarro, arranja-me lá...Vá lá...Um cigarro…
Para onde foi? Foi alguém que o tirou de lá, só pode ter sido alguém… Mas quem meu Deus? Foste tu oh Deus?
Já não consigo dormir. As noites enrolam-se em voltas, os lençóis enlaçam-se nas aflições, nas contradições, nas maldições… Já não sou o mesmo. Já não sou o André que fui. Também há quanto tempo já não o sou!? Mas agora sou o menos ainda. Já nem um Irmão Francisco sou, sou menos ainda, sou só a angústia de não saber encontrar o que tanto procuro. Sinto que sei onde deixei o que perdi, mas chego lá, e não é lá que está, mas sei que mais tarde vou lá voltar a procurar. Mas em que outro sitio mais pode estar? Só pode estar ali. Porque não está?
Deixei de frequentar os fundos. Nunca mais voltei a mirar os mortos. Agora gasto o tempo e o pensamento a controlar todos os movimentos dos meus colegas. Sei todas as rotinas deles. Sei quando cada um deles vai a casa de banho. Passaram cerca de cinco anos desde que desaparecera o esqueleto descontraído. Passado uns poucos de meses desse sucedido, deixara de ir ver os mortos, e comecei a fazer relatórios individuais de todos os habitantes. Muito trabalho empenhado na tarefa. Horas de vigilância, paciência, atenção. Graças a isto, descobri também coisas que nunca antes me haviam passado nas ideias mais macabras. Passa-se cada coisa neste mosteiro, que se alguém me pudesse agora ouvir, se eu não tivesse perdido o meu deus e alguém por mero acaso me estivesse agora a ler, decerto ficariam chocados se eu vos relatasse os acontecidos dos recantos deste mosteiro… É pena não ser possível... Infelizmente não se é ninguém sem deus… O meu deus despediu-me. Sou um personagem sem autor.
Que será que me aconteceu? Porque terei eu ficado sem o meu morto de estimação? Porque sou eu um monge e vivo num mosteiro rodeado de outros monges? Quem era aquele velho que antes de morrer nos meus braços me deu o caminho e as chaves das masmorras? Servirá de alguma coisa saber quem é ele? É isso que importa? Porque ia eu visitá-los? Por desapareceste? Alguma vez lá estiveste? Onde estás? Quero respostas? Responde-me meu morto desgraçado, ou então responde-me tu, meu fracassado deus! Responde!
Não és tu que és suposto saberes tudo? Diz lá agora de tua justiça! Responde, vá lá! Então?
Não sabes responder? Não sabes! Como não sabes? Escreves e não pensas antes, é? Escreves como falas, é? Escreves como vives? Porque o vives então?
Eu é que devia viver. Eu sim sou digno de vida. Da pura vida. Que fazes tu aí? Que fazes, responde-me? Imploro-te!
Não dá mais.
Decidi abandonar o mosteiro. Não o podia fazer, portanto ninguém o podia saber. Lá fora ia precisar de dinheiro, mas cá dentro não havia disso, por isso a ideia era levar o máximo de comida possível para dar para o máximo de dias possíveis até arranjar maneira de ganhar uns trocos.
Tudo pronto, trouxa de comida debaixo da cama, e é já na hora da oração da noite em que ia partir, que penso:
- E se fosse dar uma última olhadela lá baixo ás catacumbas? Sei lá, ver pela última vez aquele sinistro local. Despedir-me dele…
Era verão mas a esta hora era já impossível ver alguma coisa. Tive que improvisar. Afinal era o meu ultimo dia ali, podia dar o quanto quisesse nas vistas…
Chegado ás masmorras e depois de me habituar a fraca luz que provinha da minha improvisada tocha, lá ao fundo, no lugar onde estava o morto de perna cruzada, e escusado será dizer que foi para aí o primeiro sítio para onde olhei, e desta vez nesse preciso sitio onde costumava estar aquele morto, estava lá o morto. Aparentemente o mesmo morto. Sentado, de perna cruzada, recostado para trás, braços imperialmente afastados, poisado cada um na nuca de um seu inferior.
Ali estava ele, impávido e sereno como se nada fosse. Inerte como sempre. No sitio de sempre…
Fiquei petrificado. Não sabia o que pensar. Julguei ilusão, é da pouca luz.
Recolhi atrapalhado ao dormitório.
Voltei lá era dia seguinte, afinal, não tinha ido na noite anterior embora, como tinha planeado. Mas também hoje não esperei um segundo que fosse. Mal se fez luz o suficiente, peguei na trouxa de comida, nas chaves das masmorras, e lá fui eu, ver se aquele morto brincalhão, estava ou não a gozar comigo.
Antes de rodar a chave fecho os olhos e olho para o céu. Este é o meu último dia aqui. Meu Deus faz com que aquele morto não esteja ali. Ou será melhor que ele esteja? Que será preferível?
Quero-me ir embora meu Deus!
Abri a porta, e lá estava ele, perna cruzada, braços bem largos, e com um sorriso, pediu educadamente:
- Tem lume?
quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
Uma Páscoa em Janeiro! Continuação feita pelo personagem de "O final precoce devido ao desentendimento da personagem com o narrador"
O final precoce devido ao desentendimento da personagem com o narrador
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